Diante do impasse sobre as patentes de vacinas contra a Covid, a União Europeia sondou informalmente o governo brasileiro para constituir um grupo na OMC (Organização Mundial do Comércio) para debater o tema.
O objetivo é apresentar uma proposta alternativa à suspensão dos direitos de propriedade intelectual dos imunizantes, iniciativa capitaneada por África do Sul e Índia.
Interlocutores relataram à Folha que os europeus querem elaborar um texto que seja levado à OMC e consiga vencer o bloqueio no debate sobre as patentes de vacinas e outros insumos usados no combate ao vírus.
De um lado, África do Sul e Índia defendem um projeto considerado radical, que prevê ampla moratória nas licenças de ao menos três anos. Enquanto isso, países fabricantes de vacinas, como a Alemanha, resistem.
Os Estados Unidos, por sua vez, defenderam publicamente a suspensão temporária de patentes, mas têm sido cobrados a apresentar mais detalhes sobre os termos da proposta.
De acordo com pessoas que acompanham o tema, a União Europeia convidou o Brasil para compor um grupo que também deve incluir Chile, Singapura, Reino Unido e Canadá.
O país ainda não respondeu a consulta dos europeus, mas considera o movimento promissor para a construção de um consenso na entidade.
A ideia é usar como base da proposição a chamada terceira via liderada pela diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala.
Trata-se de um conjunto de medidas já apoiadas pelo Brasil que incluem a adoção de políticas que facilitem o aumento da capacidade de produção de vacinas no mundo e a transferência voluntária de tecnologia. Mas o texto que os europeus querem capitanear deve ir além e tratar, em termos menos radicais, sobre direitos de propriedade intelectual.
A avaliação é que somente abordando o tema das patentes será possível convencer as dezenas de países que hoje endossam o projeto de Índia e África do Sul a embarcar em uma redação alternativa, o que abriria caminho para a superação do impasse da OMC.
Nas palavras de um interlocutor que acompanha o assunto, os europeus sinalizaram que desejam explorar flexibilidades que já existem no acordo Trips —da sigla em inglês para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio—, inclusive o licenciamento compulsório.
Nesse sentido, uma das opções em debate é a atualização de compromissos como a declaração de Doha de 2001 sobre o acordo Trips.
A declaração de Doha cita especificamente as dificuldades que, naquele período, países em desenvolvimento estavam enfrentando com doenças como Aids, tuberculose e malária.
Em seguida, ela afirma que o acordo Trips reconhece que os países “têm o direito de realizar licenciamento compulsório e a liberdade para determinar os termos em que esse licenciamento é feito”.
Uma das possibilidades em estudo é turbinar a declaração de Doha e deixar claro que esse tipo de flexibilização pode ser feito durante pandemias e momentos de emergência sanitária internacional.
Interlocutores também disseram acreditar que há margem para detalhar mais o texto de 2001 e indicar em que condições licenças poderiam ser suspensas.
O governo Jair Bolsonaro tem recebido críticas por não ter endossado a linha de Índia e África do Sul, mas argumenta que uma ampla quebra de patentes não representará, no curto prazo, maior acesso a vacinas.
Em 28 de abril, o chanceler Carlos França ressaltou, em audiência na Câmara dos Deputados, o argumento de que vacinas contra a Covid são “virtualmente impossíveis de serem copiadas” sem o apoio dos laboratórios.
“O grande gargalo hoje, para o acesso a vacinas, são os limites materiais da capacidade de produção e questões ligadas à complexidade das cadeias de abastecimento”, afirmou.
“Os especialistas afirmam que vacinas são virtualmente impossíveis de serem copiadas, a curto ou médio prazo, sem o apoio dos laboratórios que as desenvolveram, mesmo com o auxílio da patente”, disse França.
No dia 29 de abril, o Senado aprovou um projeto de lei que permite a quebra de patente de vacinas contra a Covid-19, de medicamentos e também de testes de diagnóstico.
Após muitas discussões e polêmicas, a proposta foi aprovada por 55 votos a favor e 19 contrários. O projeto agora aguarda votação na Câmara dos Deputados.
O texto inicial, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), previa a suspensão por parte do Brasil de cumprir obrigações assumidas no acordo Trips para combater a pandemia do novo coronavírus.
O relator do texto, senador Nelsinho Trad (PSD-MS), no entanto, argumentou que seria inviável para o país deixar de cumprir acordos internacionais apenas por meio de uma lei ordinária. Por isso apresentou um projeto substitutivo, no qual afirma respeitar o Trips, mas abre a possibilidade para análise caso a caso.