Carro de boi ficou pra trás, o trem chegou, tic-tic-tac cantou forte no quase inóspito cerrado goiano. Em 27 de maio de 1912, foi concluída a ponte Engenheiro Bethout, 287,5 metros de uma estrutura metálica entre os municípios de Araguari (MG) e Anhanguera (GO), fazendo a ligação entre os dois estados. O tic-tic-tac não chegou sozinho. Trouxe progresso.
Da divisa entre territórios mineiros e goianos, os trilhos foram seguindo cerrado adentro. No início do século XX, o trem começava a chegar manso por essas bandas, correndo solto, deslizando nos trilhos, alimentando sonhos, esperanças, desbravando novas regiões, integrando o isolado Goiás às regiões mais desenvolvidas do Brasil.
Com dificuldades a Maria Fumaça foi chegando, trouxe gente de toda banda, que viu que as belas terras goianas era uma grande oportunidade de vida. Cidades foram formadas a partir da instalação da Estrada de Ferro de Goyaz, hoje Ferrovia Centro-Atlântica.
Surgiram Anhanguera, Cumari, Goiandira, Urutaí, Pires do Rio, Vianópolis, Leopoldo de Bulhões, Bonfinópolis e Senador Canedo. Vilarejos nestes lugares também foram formados e permanecem vivos até hoje, tudo graças a ferrovia. Podemos citar, por exemplo, a Vila Galvão em Senador Canedo, ou Caraíba e Ponte Funda em Vianópolis.
Na linha histórica do nosso passeio, a chegada da ferrovia propiciou muitas mudanças em regiões já existentes. Em 1913 foi entregue a estação de Ipameri. Após a passagem do trem, houve a chegada do telégrafo. Em 1921, ocorreu a inauguração da agência do Banco do Brasil mais antiga do Estado. As primeiras salas de cinema também foram instaladas na região, graças à ferrovia.
Com atrasos, interesses políticos, as obras da ferrovia ficaram paradas em muitos locais. Para se ter ideia chegou a Anápolis em 7 de setembro de 1935. O destino seria a Cidade de Goiás, antiga capital do estado, mas a demora foi tão longa, que o projeto foi alterado tendo que ser construído um novo ramal para Goiânia, com início de operação no início da década de 1950.
Entre as mudanças está na década de 1970, com a construção de um novo traçado por conta do represamento do Rio Paranaíba para construção de usinas hidrelétricas. O lago formado inundou a ponte Engenheiro Bethout e a área da estação de Anhanguera. O 2° Batalhão Ferroviário do Exército Brasileiro, mais conhecido como Batalhão Mauá, trabalhou rapidamente para a construção de uma variante entre Araguari e Pires do Rio.
Edmar César é pesquisador da Estrada de Ferro Goyaz, escreveu algumas publicações sobre a ferrovia como: Unidade: Batalhão Mauá – Uma história de grandes feitos. Ele mora em Araguari (MG).
“Quando fiz o lançamento desse livro, no final de 2003, despertou-me o desejo de dar sequência ao registro histórico da memória ferroviária de Araguari e da região, foi quando, então, surgiu a ideia de mergulhar na história da Estrada de Ferro de Goiás pela qual fiquei apaixonado, pois tive o prazer de conhecer com detalhes o grandioso trabalho dessa ferrovia que foi e ainda é motivo de orgulho em nossa memória”, destacou.
Edmar segue numa nova obra literária, que está em fase de conclusão. “Estrada de Ferro de Goiás – As fitas de aço da integração”. Ele destacou que após 12 anos de pesquisas, buscou apresentar os relevantes serviços prestados pela Estrada de Ferro de Goiás em todos os municípios e localidades beneficiados pela ferrovia desde a primeira década do século XX e suas transformações no século XXI.
“Visando manter e preservar a memória ferroviária da “Goiás”, difundir as grandes realizações da estrada e enaltecer os pioneiros e ferroviários que fizeram história sobre trilhos, o livro imortaliza os fatos históricos, registros fotográficos, depoimentos e acervos diversos da ferrovia”, detalhou.
Edmar traz novidades históricas sobre a ferrovia goiana, de que o trem circulou por aqui antes mesmo da conclusão da ponte. Na nova publicação ele destaca que em 20 de novembro de 1911, a Locomotiva nº 2, de nome José Jardim, conduzida pelo maquinista Henrique Neves, fez soar pela primeira vez o apito do trem em solo goiano, ao percorrer 3 km de extensão da ferrovia. A estrutura foi transportada de balsa em MG e GO.
Reflexões
Gláucio Henrique Chaves é pesquisador ferroviário, há anos percorre trechos da Estrada de Ferro Goyaz e registra belas imagens. Ele Mora em Uberlândia (MG). A conexão dele com a ferrovia começa em casa, é filho de ferroviário. Os avós e bisavós tanto maternos, quanto paternos trabalharam em ferrovias. Gláucio tem uma profunda paixão pelo tema.
Ele tem uma visão crítica sobre o passado, o presente e o futuro das estradas de ferro. Sobre a integração, Gláucio avalia que o país mudou muito desde o momento em que foi iniciada a construção em Araguari até a chegada em Goiânia. O pesquisador entende que um problema grave é falta de uma coordenação histórica para as ferrovias.
Com o passar do tempo, houve um crescente desinteresse pelo sistema ferroviário, em prol do rodoviário. O segundo mais barato foi trocado pelo segundo tipo de transporte mais caro. Gláucio relata que cada etapa de construção da estrada de ferro, representa um momento diferente da história do Brasil.
Após a privatização da antiga Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA), a situação se agravou com o novo modelo de concessão, entregando as estradas de ferro nas mãos de concessionárias, sem exigir contrapartidas sociais, como a preservação do patrimônio histórico, um transporte de pequenas cargas e principalmente de passageiros.
Hoje no Brasil, são milhares de quilômetros abandonados. Em Goiás há falta de investimentos e a perda de competitividade. A velocidade das composições é baixíssima, inferior a 30 km/h. Hoje a operação é feita pela empresa VLI Logística. Gláucio entende que essa lógica poderia ser modificada, mas começando pela União.
“Hoje a ferrovia é uma correia de transporte de empresas privadas. Ela não serve para integrar pessoas e nem para cargas, somente para os grupos relacionados a determinados tipos de transporte. Só vai mudar com um novo modelo de concessão”, afirmou.
Em Goiás, há um projeto que está sendo articulado pelos municípios da chamada Região da Estrada de Ferro (Sudeste Goiano), com a participação da Goiás Turismo. A intenção é de implantar um trem turístico de passageiros.
Gláucio avalia que a ideia é boa, mas não acredita no futuro do projeto, justamente pela falta de coordenação federal e o modelo de concessão que não ajuda. Ele entende que o ideal seria a reimplantação do trem regular de passageiros, serviço extinto na década de 1980.
“Infelizmente não vejo a Estrada de Ferro Goyaz inserida em alguma lógica de Turismo, porque as concessões ferroviárias não incentivam esse tipo de coisa. Precisa ser algo do governo federal para incentivar isso, e pela extensão da ferrovia, deveria ser um transporte de carreira mesmo e o turismo de forma complementar”, argumentou.
Hoje em dia, o trem ainda insiste em chegar em Goiânia. Ainda chega a capital no terminal de combustíveis do Jardim Novo Mundo, numa base da Petrobrás, um óleo grosso que geralmente é usado para pavimentação asfáltica. O trem perdeu conexão com a cidade. Mas houve um suspiro, com a restauração da belíssima Estação Ferroviária de Goiânia, no Centro da capital.
Samuel straioto
Do Mais Goiás | Em: 26/05/2020 às 16:25:15