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‘Drogas que acreditávamos serem fantásticas acabaram matando’, diz brasileiro que lidera estudo nos EUA
Ciência e Tecnologia
Publicado em 27/04/2020

A defesa da cloroquina e da hidroxicloroquina pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, como opções de tratamento para a Covid-19 sem a devida comprovação científica despertou uma intensa discussão sobre os dois medicamentos ao redor do planeta tem preocupado especialistas no país e no mundo.

 

Dentro dos EUA, no entanto, quem lida diretamente com ensaios clínicos para responder à pandemia vê com preocupação o clima de expectativa criado entre pacientes e médicos.

 

O brasileiro André Kalil, infectologista e especialista em tratamento intensivo, de 54 anos, é o principal pesquisador de um estudo do governo americano, conduzido no Centro Médico da Universidade de Nebraska e com o potencial de redefinir o curso da pandemia nos EUA.

 

Todos os dias, Kalil recebe dezenas de e-mails e telefonemas de pacientes e médicos clamando pelo acesso a drogas experimentais, como a cloroquina e a hidroxicloroquina. Seu laboratório, no entanto, começou os testes com o remdesivir, um antiviral, e os resultados devem ser apresentados nas próximas semanas.

 

O especialista tem décadas de experiência no uso de medicamentos experimentais, tendo presenciado bons e maus exemplos. Kalil diz que poucas vezes esteve mais frustrado do que agora por saber das possíveis consequências negativas de decisões emergenciais tomadas com base no desespero.

 

— Muitas drogas que acreditávamos serem fantásticas acabaram matando pessoas. É difícil ainda precisar explicar isso — afirma o pesquisador.

 

Exemplo do ebola

Um dos exemplos que mais o preocupa é o da epidemia do ebola na África entre 2014 e 2016.

 

Na época, médicos usaram o argumento de que não era possível esperar até o consenso em torno de evidências científicas e drogas não testadas foram prescritas para pacientes da doença por médicos otimistas dotados de intenções nobres.

 

Quatro anos após o fim da crise, nenhum dos remédios experimentais usados na ocasião foi aprovado para o tratamento do ebola nos EUA.

 

A cloroquina e a hidroxicloroquina, agora no centro do pódio, já foram testadas no passado contra diversas doenças virais, incluindo a Síndrome Aguda Respiratória Grave (Sars) e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers), ambas causadas por vírus da família coronavírus, bem como dengue, ebola, HIV, chicungunha e influenza.

 

No entanto, Kalil lembra que, mesmo quando os remédios indicaram resultados positivos em laboratório, a eficácia não se comprovou no mundo real. As duas drogas, utilizadas no combate à malária e a doenças crônicas como o lúpus, nunca se provaram eficientes contra qualquer doença viral.

 

A malária é causada por um parasita. Além disso, há efeitos colaterais, como danos ao fígado e à medula óssea, bem como distúrbios ao ritmo cardíaco que pode se revelar fatal em pacientes mais velhos e jovens com complicações médicas.

 

A defesa da combinação do antibiótico azitromicina com a cloroquina e hidroxicloriquina, defendida por aliados próximos de Trump por influência de Vladimir Zelenko, um desconhecido médico familiar de uma pequena localidade no estado de Nova York, pode ser ainda mais perigosa, alerta Kalil.

 

Zelenko foi impulsionado pela mídia conservadora nos EUA após propor o coquetel junto de sulfato de zinco contra a Covid-19.

 

A azitromicina, lembra o pesquisador da Universidade de Nebraska, também pode causar problemas graves no ritmo do coração. A combinação das drogas nunca foi testada em humanos, segundo Kalil.

 

Isso não significa que o coquetel não possa ajudar pacientes com o coronavírus, mas ainda não há qualquer comprovação científica.

 

— Isso é muito pesado, emocionalmente. É um déjà vu da epidemia do ebola — desabafa.

 

Ainda não há vacina ou tratamento para a Covid-19. Segundo a Universidade Johns Hopkins, a doença já contagiou quase 3 milhões de pessoas em todo o mundo, sem contar a subnotificação alardeada em diversos países. O número de vítimas fatais notificadas ultrapassou os 100 mil.

 

Pesquisa com remdesivir

O remdesivir, produzido pela farmacêutica Gilead, foi escolhido pelo laboratório de Kalil depois que pesquisadores fizeram uma pesquisa minuciosa por drogas que poderiam se mostrar eficientes contra o Sars-CoV-2. O remédio foi criado para atuar como um antiviral de espectro amplo, ou seja, capaz de parar a síntese de material genético de vários vírus.

 

Estudos de laboratório e em animais sugerem que o remdesivir pode ser eficaz contra a família coronavírus. A droga foi testada em animais infectados com a Sars e a Mers.

 

— Não sabemos se o remdesivir chegará ao pulmão em uma concentração suficiente para matar o vírus. Também não sabemos seus efeitos colaterais — pondera Kalil.

 

Embora o remdesivir não tenha aprovação para uso no tratamento de qualquer doença, a Gilead forneceu a droga para pacientes da Covid-19 em exceções legais. Mas a demanda cresceu tanto que a companhia farmacêutica anunciou no último mês que interromperia a distribuição do antiviral.

 

— Eu nunca recomendaria essa ou qualquer outra droga experimental off-label (cuja prescrição foge ao previsto na bula) para meus pacientes. Não existe nada compassivo no uso compassivo. Você está lidando com sentimentos — opina.

 

Além dos possíveis riscos destes medicamentos experimentais, o fato da droga ser receitada de maneira tão abrangente dificulta, inclusive, a identificação de sua eficácia.

 

Se um paciente for tratado com remdesivir ou cloroquina e morrer, a droga terá falhado? O remédio acelerou o óbito? Se sobreviver, terá sido pelo remédio? Ou apesar dele? Para isso, especialistas defendem ensaios clínicos controlados.

 

Testes com passageiros do Diamond Princess

Os estudos liderados por Kalil não são pioneiros na testagem do remdesivir contra o novo coronavíorus, mas, nos Estados Unidos, trata-se da única iniciativa com o rigor necessário para definir sua eficácia no tratamento da Covid-19.

 

A pesquisa começou em fevereiro com três pacientes que se contaminaram a bordo do cruzeiro Diamond Princess, que ficou em quarentena durante duas semanas na cidade de Yokohama, no Japão, onde pelo menos 700 passageiros adoeceram. Eles foram repatriados e encaminhados para a Universidade de Nebraska.

 

Agora, dois meses depois, 400 pacientes participam dos testes em diversas instalações. O número já é suficiente para uma análise preliminar que definirá se o experimento com o remdesivir deverá ou não continuar. Kalil não quis adiantar, no entanto, quais outras drogas serão testadas.

 

Ele também lamentou a publicação de estudos de caso baseados em episódios individuais de pacientes em publicações científicas prestigiadas.

 

— Publicar um artigo com base em um caso único (de sucesso) de uma droga experimental em uma revista científica de grande impacto durante uma pandemia é equivalente às notícias sensacionalistas. Precisamos fazer melhor para salvar vidas durante a crise — defende Kalil.

Agência O Globo

Agência O Globo

Do Agência O Globo | Em: 27/04/2020 às 08:26:16

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