
(Folhapress) O fascínio pelo autoritarismo pode ter raízes na criação e nas relações familiares. A hipótese é o centro do que propõe o médico e psicanalista Paulo Schiller em seu novo ensaio “A paixão pela mentira: a família e as tiranias”, lançado em julho pela editora Todavia.
Com o olhar de 40 anos de prática clínica, o autor e tradutor traça paralelos entre o que tem escutado no consultório e a ascensão de um encanto por regimes autocráticos no mundo. Segundo ele, pessoas que passaram por alguma variante de humilhação na infância —como desamor, desrespeito e descuido— podem desenvolver a paixão pela mentira e pela violência.
“Às vezes parece que contar o que escutamos no cotidiano da clínica é como a revelação de um segredo que deveria permanecer nas sombras”, diz.
Sem revelar detalhes que poderiam implicar na identificação de pacientes, o autor se propõe a escrever sobre psicanálise como os analistas a tratam em conversas informais. Ele argumenta que a disciplina acaba, por vezes, parecendo reservada a uma aristocracia de especialistas e a uma elite de pacientes.
O resultado é uma reflexão que relaciona características de defensores de regimes fascistas a suas histórias familiares, remetendo às discussões propostas por Theodor Adorno no livro “A personalidade autoritária”, publicado em 1950 nos Estados Unidos e referenciado na obra de Schiller.
Nascido das cinzas do nazismo, o livro integrante da Escola de Frankfurt pretendia responder: o que leva alguém a se encantar por um regime fascista? Os autores partiram da ideia de que encontrariam nas histórias familiares as razões do fascínio por tiranias. Eles incluíram na pesquisa 2.000 pessoas do estado da Califórnia.
Como resultado, encontraram que os indivíduos que simpatizavam com esses regimes tendiam a idealizar as qualidades dos pais, o que combinava com traços de uma obediência inquestionável, um ambiente severo e um tratamento impessoal na infância.
Ainda, entre os que manifestavam maiores tendências ao fascismo, a expressão de um moralismo excessivo, que exalta a família perfeita, contrastava com a promoção da promiscuidade na vida pessoal. O autor vê o próprio livro como um endosso às ideias de Adorno, embora não conhecesse o trabalho até antes de começar o seu. “Eu o descobri durante a escrita do livro e foi um feliz encontro”, relata.
Segundo Schiller, a paixão pela mentira viria, então, das vivências precoces, das histórias familiares que abrigam as inverdades mascaradas, contadas por quem pretende que as coisas sejam diferentes do que são.
A obediência inquestionável aos pais, para ele, relaciona-se a um grau de submissão que está presente também na reverência a um líder tirânico. Essa figura se voluntaria, junto a guias espirituais, instituições religiosas e até alguns médicos e psicoterapeutas, na corrida pela detenção do saber o que é melhor para cada um de nós, escreve o autor.
Aqueles que se identificam com elas, portanto, tenderiam a ser os mesmos que não se acreditam capazes de tomar decisões próprias. “Como dizia Freud, é muito grande a tentação de encontrarmos um pai poderoso que sabe o que é bom para cada um de nós”, afirma.
Crítico às terapias comportamentais e à psiquiatria, diz que ambas descartam o interesse pelas origens dos sintomas e a relevância da história de cada um desde a infância, absolvendo os indivíduos de toda a responsabilidade.
A negação da importância da história favoreceria, portanto, o mito de uma história sem deslizes, com segredos e não ditos. “Em política, no passado, a mentira visava camuflar, ocultar, encobrir um fato, uma verdade. A mentira moderna visa invalidar ou destruir fatos ou verdades. Os fascismos usam a mentira de modo sistemático e deliberado. Muitos dos que se encantam por regimes antidemocráticos têm consciência das mentiras que sustentam tais regimes.”
A análise, por sua vez, entraria como um instrumento que propicia a desmontagem de repetições de atitudes tomadas para a proteção das imperfeições dos nossos pais.
“A psicanálise tem por finalidade primária o resgate do desejo de cada sujeito, único, sustentado sobre uma teoria desenvolvida por cada um, e nunca sobreviveu em regimes tirânicos.”
