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Zolpidem: casos de alucinações e dependência sobem no Brasil
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Publicado em 12/11/2022

“Dirigi por aí dormindo”. “Mandei áudios no grupo do trabalho”. “Esqueci como falar português”. Os relatos são muitos, e têm dominado as redes sociais. As experiências aconteceram durante a noite, mas foram descobertas apenas no dia seguinte. A causa é a mesma: o remédio hipnótico para insônia Zolpidem, cujas vendas explodiram no Brasil.

 

Especialistas explicam que o medicamento por si só não é um problema, mas o uso inadequado, o quadro de dependência e a busca pelos comprimidos para fins recreativos, que tem crescido entre os jovens, oferecem uma série de riscos graves que têm acendido o alerta em hospitais e consultórios.

 

A preocupação não é à toa. A compra do medicamento de fato cresce em ritmo alarmante entre os brasileiros: de 2017 até 2020, por exemplo, aumentou 121,5%, saltando de 10,5 para 23,4 milhões de caixas vendidas. Em 2021, houve uma ligeira queda, porém ainda em patamar elevado, terminando o ano com 19 milhões de embalagens comercializadas. Em 2022, somente nos seis primeiros meses do ano já foram 10,6 milhões, uma tendência de subida novamente.

 

— Esse crescimento é em parte porque muitos médicos que prescreviam benzodiazepínicos, geração anterior de remédios para a insônia, passaram a indicar o Zolpidem. Mas também é pelo fácil acesso, que leva ao uso abusivo e inadequado, até mesmo de forma recreativa, o que é muito grave. E tem também essa característica de hoje as pessoas quererem ter tudo sob controle, até mesmo o adormecer, sendo que a realidade não é bem assim — avalia a coordenadora do Ambulatório de Sono do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), Rosa Hasan.

 

Alguns efeitos colaterais do remédio são bem conhecidos, como a amnésia, a agitação e os pesadelos, porém um que tem ganhado destaque é o sonambulismo. Segundo um estudo publicado no periódico European Neuropsychopharmacology, a consequência acomete cerca de 5,1% dos pacientes, mas especialistas alertam que entre aqueles que fazem uso de forma inadequada, como tomar fora da cama ou além do período recomendado, de no máximo quatro semanas, a probabilidade é bem maior.

 

O sonambulismo foi justamente o que levou a dona de casa Rica Gomes Todeschini, de 49 anos, moradora de São Paulo, a interromper a medicação. Ela começou a tomar o Zolpidem por orientação médica, em 2019, logo depois de ter perdido a mãe e ter descoberto um nódulo no pâncreas, cenário que a deixou com dificuldades intensas para dormir.

 

Antes de começar o remédio, ela costumava ir para o seu ateliê de costura ao perder o sono. Por isso, seu marido não estranhou a princípio quando, após cerca de quatro meses tomando o hipnótico, Rica passou a se levantar e sair do quarto no meio da noite de forma recorrente, por mais de dez vezes.

 

— Só que um dia ele ficou cismado porque estava começando a ser quase todo dia, ele acordava para ir ao banheiro e eu não estava na cama. Então decidiu me procurar no ateliê, mas não encontrou. Na hora que ele abriu a porta de casa, o carro não estava na garagem. Era três horas da manhã — conta a dona de casa.

 

Ele esperou Rica retornar, pensando que teria sido uma emergência, mas quando ela voltou, aproximadamente 45 minutos depois, conversou com ele normalmente como se nada tivesse acontecido. No dia seguinte, ele perguntou se ela lembrava que havia dirigido na noite anterior, o que a pegou de surpresa.

 

— Eu disse a ele que não e ele me contou que eu tinha pegado o carro. Eu não sei para onde eu fui, não sei o que eu fiz, não sei se parei num boteco e bebi, não me lembro de nada. Fico com medo de ter feito algo errado, é muito perigoso. Liguei para o psiquiatra e ele mandou eu parar, mas aos poucos, porque pelo tempo que eu estava tomando não poderia interromper imediatamente. Nesse meio tempo, meu marido escondeu a chave do carro à noite — diz.

 

Remédio não é vilão, uso inadequado é

Duas neurologistas ouvidas pelo jornal O Globo explicam que o Zolpidem não é um vilão, mas acabou não sendo a promessa de um medicamento perfeito para a insônia que foi vendida nos anos 90. Ele foi criado para substituir os benzodiazepínicos, descobertos nos anos 60, que eram mais amplamente utilizados, porém criam quadros graves de dependência e déficit cognitivo a longo prazo.

 

Ele faz parte das chamadas drogas Z, ou não benzodiazepínicos, que atuam também no sistema do cérebro chamado de GABA. Esse mecanismo promove uma redução da atividade no sistema nervoso e consequente efeito hipnótico. Porém, as drogas Z atuam de forma diferente dos benzodiazepínicos.

 

— Ele é um hipnótico muito mais específico, atua no subtipo de receptor chamado GABAA. Quando ele se liga, ele vai especificamente para um local onde existe o efeito de fazer a pessoa dormir rapidamente. Outros remédios induzem o sono de uma maneira menos abrupta, por serem menos específicos, aos poucos. Mas esse forte potencial fez com que ele passasse a ser o hipnótico mais consumido no mundo, e aqui no Brasil teve um aumento vertiginoso nos últimos anos. Coincidiu com a pandemia, mas a curva crescente já vinha antes — explica a neurologista Dalva Poyares, professora de medicina do sono na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora do Instituto do Sono.

 

Rosa, da USP, diz que ele não foi o que se esperava porque hoje sabe-se que ele também promove quadros de dependência e tolerância, e podem levar a efeitos colaterais preocupantes, como os vividos por Rica. Porém, destaca que é um remédio importante para os casos de insônia em que há a devida orientação médica.

 

— Se é uma pessoa que toma direito, indicado pelo médico, na cama, sem ultrapassar o limite de quatro semanas, pontualmente, nós não temos problemas com a medicação. É um bom remédio, o problema é esse uso indevido — diz a neurologista.

 

Dalva destaca que o fármaco, quando orientado, é importante ser administrado somente quando se estiver pronto para dormir, sem mexer no celular depois ou se levantar da cama. Além disso, destaca que não é uma terapia de uso prolongado, e que exceder o prazo da bula de quatro semanas é uma das principais causas da dependência.

 

— Com o uso crônico, você pode desenvolver tolerância, ou seja, precisar de uma dose maior para ter o mesmo efeito, e ele começa a reduzir o tempo. Então a pessoa passa a acordar no meio da noite, por causa do Zolpidem, e toma outro — diz a especialista.

 

Tanto ela, como Rosa, contam atender uma série de pacientes com quadros de vício, uma quantidade que cresce em ritmo alarmante. Além dos riscos já conhecidos pelo comportamento inconsciente – como bater de carro, ter relações sexuais indesejadas e desprotegidas, passar por situações de constrangimento ou criar despesas financeiras –, a dependência a longo prazo pode levar a problemas neurológicos, como de memória, e a um quadro ainda pior de insônia.

 

— No Hospital das Clínicas da USP nós temos até mesmo internado com uma certa frequência casos gravíssimos de dependência em números absurdos de comprimidos, pessoas que tomam mais de 100 por dia. Toda semana eu atendo dois, três casos novos — conta Rosa.

 

Especialistas pedem mais fiscalização

Uma das críticas das especialistas sobre o fácil acesso ao Zolpidem é em relação às regras para a prescrição no Brasil. O fármaco faz parte da categoria B1 de medicamentos, os psicotrópicos, e portanto deveriam demandar uma receita do tipo azul para a compra nas farmácias. Nessa modalidade, cada receita é padronizada, tem uma numeração controlada, fica retida na drogaria e exige mais informações do médico e do paciente. Portanto, é um controle de fiscalização mais rígido.

 

No entanto, num dos adendos na portaria que rege a prescrição de medicamentos, a 344/1998, foi estabelecido que medicamentos à base de Zolpidem com menos de 10 mg podem ser prescritos com a receita de controle especial, uma forma mais branda. O Zolpidem é vendido em formulações de 5 mg a 12,5 mg, sendo a de 10 mg a mais comum. Essa categoria de prescrição é como a receita simples branca, com a mudança apenas de que sejam emitidas duas vias, em que uma fica com o farmacêutico, geralmente com validade de 30 dias .

 

— Aqui no Brasil, temos esse problema muito sério de não ser um remédio muito controlado, por não precisar da receita azul. Então é mais fácil de vender, de comprar. Eu gostaria que fosse uma medicação mais controlada, porque a facilidade dá a sensação de ser um remédio tranquilo para qualquer um. Na França, por exemplo, eles restringiram o acesso e isso reduziu bastante o consumo — defende a neurologista da USP.

Agência O Globo

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