A Comissão de Diversidade e Gênero da OAB de Minas Gerais está apurando publicações e falas consideradas homofóbicas de dois irmãos famosos no mundo evangélico: os pastores e cantores Ana Paula e André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha.
Num vídeo feito em 2016, e que viralizou no Twitter no início de setembro, Ana Paula diz que ser gay “não é normal” e que “a Aids está aí para mostrar que a união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte”. Já no Instagram, dias antes desse vídeo ser replicado nas redes, André escreveu que homossexuais “podem ir para um clube gay. Mas, na igreja, não dá”.
A vice-presidente da comissão da OAB, Emília Viriato, escreveu em seu Facebook que pelo menos desde 2017 “essa senhora e seu irmão têm realizado inúmeras falas homofóbicas”. E lembrou que, em maio de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu enquadrar a homotransfobia na Lei de Racismo, que prevê de um a cinco anos de prisão.
Ana Paula e André não citaram a Bíblia para justificar suas declarações. Mas existem, neste livro, citações sobre o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo atreladas à palavra “abominação”, como no livro de Levítico, do Velho Testamento, e é sobre esses textos que alguns religiosos se apegam para pregar aos seus fiéis que a homossexualidade é condenável aos olhos de Deus.
Especialistas ouvidos por Universa, no entanto, afirmam que é preciso fazer uma leitura da Bíblia levando em consideração o momento histórico em que ela foi escrita.
“A Bíblia é uma coleção de desafios humanos e tudo tem um contexto. Às vezes, você vê textos contraditórios dentro de um próprio livro. Então não pode separar um trecho. É um processo contínuo de atualização da história. Mas o fundamentalista nunca vai entender isso”, afirma Nancy Cardoso Pereira, doutora em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo e pós-doutora em história antiga na Unicamp. Nancy questiona a fala do pastor André Valadão:
“Os gays procuram o lugar que eles quiserem. Jesus também fala: ‘vá, venda tudo, dê aos pobres e me segue’. Então rico também não poderia entrar na igreja. Tem que ir para clube. Em outro texto, diz que não pode ter duas capas e dois sapatos. A madame pastora tem um monte de roupa. Então a senhora não pode entrar na igreja de Jesus”, continua, referindo-se à Ana Paula Valadão.
“Abominação”
No 12º capítulo de Levítico, o terceiro livro do Velho Testamento, está escrito: “Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. É uma abominação”. Em seguida, no 20º capítulo, surge a seguinte frase: “O homem que se deita com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação, deverão morrer, e o seu sangue cairá sobre eles”.
Pesquisadores apontam que o Levítico foi escrito no período do cativeiro na Babilônia, para onde foram enviados os judeus do antigo Reino de Judá pelo rei Nabucodonosor 2º. A primeira deportação teve início em 609 a.C. Na volta desse povo, e numa tentativa de reconstrução do reino houve um choque cultural com quem ficou no local. E esses que saíram do cativeiro tentaram separar o que consideravam puro do impuro. Daí surgiram listas de impurezas como tocar uma mulher menstruada e se deitar com outro homem, como se ele fosse mulher, conforme explica o filósofo José Edmilson Schinelo, mestre em teologia pela Escola Superior de Teologia e professor na Universidade Católica Dom Bosco.
“Antes de pegar qualquer texto bíblico, é preciso indagar por que se faz a leitura seletiva dele”, diz o teólogo. “Eu parto do princípio de que Deus nos sonhou plurais em todos os sentidos.
Tanto o heterossexual como o homossexual fazem parte do plano criador. E qualquer interpretação que seja conduzida para o desrespeito ao direito do ser humano constitui crime.
“Nem efeminados herdarão o reino de Deus”
Em 1Coríntios 6,9-10, no Novo Testamento, escrito após a morte de Cristo, o apóstolo Paulo diz: “Não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus”.
É preciso novamente aqui entender a tradução para “efeminado”, explica Schinelo. Essa palavra é uma tradução do grego “Malakói”, que também já foi traduzido para “prostituído” e “masturbador”. Só que a palavra também significa macio. Tanto que em outro trecho da Bíblia, em Matheus 11: 8, Jesus pergunta sobre João Batista: “Que fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? Um homem vestido de roupas finas”. No grego, “roupas finas” está escrito “malakóis enfiesménon”.
“Sob esse contexto, Malakói poderia estar relacionado ao homem com comportamento delicado, fino, mas vamos lembrar que estamos no primeiro século, e era a palavra de Paulo, não a de Jesus. Não tem como dizer, a partir daí, que estamos falando de um homossexual. Então o problema não é o que está escrito, mas como se interpreta a Bíblia.”
Não é para obedecer
Nancy Pereira conclui que a Bíblia não é para ser obedecida ao pé da letra mas que o livro serve de exercício de atualizar as perguntas feitas no passado e entender como elas foram respondidas naquela época —e como seriam hoje. E exemplifica:
“A sexualidade é um lugar de limite, de conflito, de prazer e de dor. Isso sempre traz questões à humanidade. Como no passado se resolvia? Em Levíticos, capítulo 18, com uma lista de relações abomináveis, como não poder ter relação com a tia e a sogra, porque causa confusão social. Mas [essa lista] não fala numa interdição do pai com a filha. Isso quer dizer que é permitido porque não está nessa lista? Não sei.”
“Aquela lista não está ali para isso, mas para mostrar que, diante da complexidade da sexualidade, os grupos humanos precisam criar limites e tabus. E essa é uma lista do passado. Hoje, faríamos uma maior. O texto bíblico não diz para você o que tem que fazer, mas convida a ter coragem de se colocar diante das questões mais humanas.”
A reverenda Ana Ester, doutora em ciências da religião pela PUC Minas e clériga ordenada pelas Igrejas da Comunidade Metropolitana, que em seu Instagram se apresenta como “reverenda sapatão”, atenta que a leitura fundamentalista, que desconsidera o tempo e o contexto em que a Bíblia foi escrita, faz do público LGBTQ+ uma vítima de violência.
“É imperativo que a leitura da Bíblia não desconsidere a multiforme criação de Deus. Pessoas dissidentes sexuais e de gênero [dissidentes das normativas heterossexuais] existem e elas estão, também, dentro das igrejas. Importa agora saber se elas continuarão sendo objetificadas, se continuarão sendo vítimas de violência religiosa, ou se serão incluídas de uma maneira em que respeite a integralidade de seus corpos e de suas experiências sexuais.”
“Essa é uma agenda urgente para o cristianismo e, quer queiram quer não, continuaremos criando nossos espaços de resistência para a livre experiência do Sagrado.”
Uma experiência que não castra nossos corpos, mas que celebra as nossas diferenças.
Do FolhaPress | Em: 28/09/2020 às 09:00:26