Por mais que tente retomar a rotina, a professora Júlia*, que prefere não revelar o nome verdadeiro ou idade, dificilmente consegue se sentir tranquila nos dias que passa em seu apartamento em Perdizes, zona oeste de São Paulo. Desde que descobriu que foi fotografada sem consentimento por moradores do condomínio de luxo que fica em frente ao seu, o pensamento de que está sendo observada passa constantemente pela sua cabeça.
Como resposta, Júlia decidiu pendurar uma faixa na janela, com trechos do Código Penal, contendo os três artigos pelos quais os vizinhos que produziram as imagens estão sendo investigados criminalmente. Para Universa, ela conta detalhes sobre o caso.
“Um assunto chato”
Seu primeiro contato com as imagens aconteceu quando uma funcionária do prédio onde mora a chamou para conversar. A professora, que está cumprindo o isolamento social e trabalhando de casa desde março, foi alertada de que aquele seria “um assunto chato”. Durante a conversa, foram apresentadas a ela três fotos suas em momentos íntimos, enquanto usava poucas roupas e que continham nudez, que foram tiradas sem o seu consentimento, possivelmente por vizinhos do prédio da frente.
“Jamais poderia pensar que algo do tipo iria acontecer. Em nenhuma das fotos estou totalmente nua, mas foi uma violação imensa da minha privacidade. Em uma delas, por exemplo, havia acabado de acordar e estava vestindo somente uma camiseta dentro da sala. A pessoa que registrou as imagens deu zoom o suficiente para que meu rosto pudesse ser identificado”, conta.
Imagens que foram compartilhadas
Passado o susto inicial, Júlia procurou entender como as fotos haviam chegado até a funcionária do seu prédio e construiu a hipótese que vem sendo investigada pela polícia. “Aparentemente, uma das moradoras do condomínio de luxo que fica em frente ao meu e que é avaliado em R$ 2,5 milhões, considerou moralmente inadequada a forma como eu agia dentro da minha própria casa”, diz.
“Esta mulher teria incentivado outra, que trabalha para ela, a registrar as imagens”, conta. Então as fotos íntimas começaram a circular via Whatsapp entre funcionários tanto do condomínio como do prédio em que ela mora. Julia teve acesso também a um áudio da mulher que supostamente a fotografou, em que ela confirma que a patroa observava e desaprovava verbalmente o comportamento da vizinha.
Medidas legais
No mesmo dia em que tomou conhecimento das fotos, um funcionário do condomínio de onde as imagens foram tiradas procurou a administração do prédio de Júlia em tom acusatório. “Ele disse que estava representando um morador indignado e questionou quais providências seriam tomadas contra mim”, afirma.
Segundo a professora, o homem sugeriu que o proprietário de seu apartamento alugado fosse contatado e esperava que ela recebesse algum tipo de punição ou despejo.
Quando entendeu a gravidade da situação, a professora procurou uma advogada para saber como deveria proceder legalmente. Após ser devidamente orientada, solicitou a abertura de uma investigação criminal no no 23º Distrito Policial de São Paulo.
Segundo a advogada, quatro crimes deveriam ser investigados no seu caso: produzir registro audiovisual de alguém sem autorização; repassar esse tipo de registro sem consentimento; difamação e, por fim, constranger uma pessoa a fazer o que a lei não manda.
Cansaço e medo
A professora acredita ter sido vítima de machismo e da sensação de poder que os vizinhos responsáveis demonstram ter. “É um pensamento conservador, moralista, de achar que a mulher está errada. Eu trabalho, limpo minha própria casa, não fiz absolutamente nada de errado. Já eles têm outro estilo de vida, só saem de carro, mas se sentiram no direito de me expor e de me assediar”, desabafa.
Ela afirma estar emocionalmente desgastada pelos processos burocráticos que precisaram ser tomados. E se sente dividida quanto a retomada da vida como era antes.
“Um lado meu pensa que não podem me invadir assim e minha intenção é de continuar com a rotina normalmente. Por outro lado, na prática, as imagens me desestruturaram muito e não consigo deixar de pensar na possibilidade de que alguém está me observando. Por isso decidi produzir uma faixa, com a ajuda de artistas plásticos, a fim de alertar os envolvidos sobre os crimes que cometeram.” Enquanto a investigação segue, a faixa está pendurada na sua janela.
Do FolhaPress | Em: 19/08/2020 às 09:38:36