Editada durante a ditadura militar, em 1983, a Lei de Segurança Nacional (LSN) vem sendo usada até hoje por autoridades para enquadrar criminosos e, muitas vezes, inimigos políticos. O alvo mais recente foi o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que associou a imagem de militares a um genocídio na pandemia. O Ministério da Defesa protocolou representação contra ele na Procuradoria-Geral da República (PGR) recorrendo à LSN. Durante os governos militares, a lei foi muitas vezes usadas para coibir manifestações da esquerda contrárias à ditadura. A norma segue em vigor e não há irregularidade em usá-la — mesmo que ela guarde a simbologia de uma época de violação de direitos individuais.
O professor de Direito Michael Mohallem, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro, lembra que a lei protege valores importantes — como a própria democracia. No entanto, como ela tem trechos vagos, dá margem para que autoridades usem a norma de forma equivocada. Entre os artigos pouco precisos está o 18, que considera crime “tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados”. Ou o 23, que coíbe a incitação “à subversão da ordem política ou social”.
Embora defenda sua aplicação, Mohallem alerta para a importância de reformá-la, sob o comando de um Congresso Nacional democraticamente eleito. Ele pondera que a mudança não deveria ser feita agora, mas “em um momento de mais pacificação institucional”
— É uma lei que tem sua importância, ela protege valores importantes em uma democracia. Mas, pelo fato de ter sido criada no fim do período militar, ela costuma ser lembrada como uma lei para ser refeita. A discussão não é abolir a lei, mas modernizar. Alguns artigos da lei são subjetivos e permitem aplicação abusiva. Ao mesmo tempo, é uma lei válida, que protege valores que nenhuma outra lei protege — disse o professor.
Na avaliação de um ministro do STF, que falou ao GLOBO reservadamente, a manifestação de Gilmar Mendes não deveria ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional. Ele considera que a fala de Mendes foi ofensiva, mas a União deveria ter entrado com uma ação civil na primeira instância pedindo indenização por danos morais. Outro integrante do Supremo, também ouvido em caráter reservado, considera que Mendes “passou da linha”. Mas ele também considera que o caso não deveria ser enquadrado em crime da LSN.
O caso de Gilmar Mendes não é o único. Recentemente, o ministro da Justiça e da Segurança Pública, André Mendonça, requisitou a abertura de dois inquéritos contra jornalistas com base na lei de 1983. O último pedido, da semana passada, teve como base o artigo “Por que torço para que Bolsonaro morra”, do colunista Hélio Schwartsman, publicado no jornal “Folha de S.Paulo”. Mendonça justificou o requerimento citando o artigo 26 da lei, que prevê pena de um a quatro anos de reclusão para quem “caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”.
O ministro citou entre princípios básicos do Estado de Direito limitações a direitos fundamentais, como à liberdade de expressão e à de imprensa, para alegar que quem defende a democracia deve repudiar o artigo, publicado após a confirmação de que Bolsonaro contraiu a Covid-19. Mendonça explicou ainda que a LSN prevê que o ministro da Justiça pode requerer apuração de fato que configure crime previsto na norma por meio de inquérito da Polícia Federal.
Em 15 de junho, ele havia solicitado à PF e à Procuradoria-Geral da República (PGR) a abertura de investigação sobre a publicação de uma charge do cartunista Aroeira, reproduzida na página do Twitter do “Blog do Noblat”, do jornalista Ricardo Noblat, que liga a suástica nazista a Bolsonaro. “O pedido de investigação leva em conta a lei que trata dos crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, em especial seu art. 26”, explicou Mendonça, em um tuíte, referindo-se ao mesmo artigo em que baseou seu outro pedido.
Em fevereiro deste ano, o antecessor de Medonça, Sergio Moro, também pediu à PF a abertura de um inquérito com base na LSN, mas para investigar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A acusação ocorreu a partir de declaração do petista, de novembro do ano passado, sugerindo que Bolsonaro é um “miliciano”. Lula chegou a prestar depoimento a um delegado da PF, que encaminhou um relatório da investigação à Justiça atestando “a inexistência de qualquer conduta praticada, por parte do investigado, que configure crime previsto na Lei de Segurança Nacional”.
— A direita está tentando destruir tudo que fizemos. Aqui no Brasil nós vamos ter de levantar a cabeça e lutar. Não é possível que um país do tamanho do Brasil tenha o desprazer de ter no governo um miliciano responsável direto pela violência contra o povo pobre, responsáveis pela morte da Marielle, responsável pelo impeachment da Dilma, responsáveis por mentirem a meu respeito — disse Lula durante encontro com o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB).
Mas não é só do governo a iniciativa de lançar mão da LSN. Em abril do ano passado, o ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news no STF, determinou buscas e apreensões contra várias pessoas — entre elas, o general da reserva Paulo Chagas, ex-candidato ao governo do Distrito Federal. Ele tinha chamado os ministros do STF de “diminutos fantoches”. Nas ordens de busca e apreensão, Moraes sustentou que havia indícios de que os investigados cometeram crimes previstos na LSN. “Verifica-se postagem reiterada em redes sociais de mensagens contendo graves ofensas a esta Corte e seus integrantes, com conteúdo de ódio e de subversão da ordem”, escreveu Moraes.
Do Agência O Globo | Em: 16/07/2020 às 09:17:30