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Covid-19 expõe e amplia desigualdades no Chile
Coronavírus
Publicado em 10/05/2020

“Sou uma das mulheres que não podem ficar em casa durante a pandemia. Eu trabalho há 15 anos em uma farmácia de segunda a sábado e, mesmo que houvesse uma quarentena declarada, teríamos que abrir a loja. Eu também sou mãe de dois filhos, com 18 e 20 anos, e estou separada. O pai ajuda com alguma coisa, mas não é suficiente. Meus filhos também não podem ir morar com ele, porque vive com os avós idosos, diabéticos e hipertensos. Meu salário é o que sustenta a casa.

 

Não pude me demitir porque tenho dívidas. Mais uma vez, o dinheiro é o problema implícito, e as mulheres são duplamente sobrecarregadas, o que também levou à explosão social… infelizmente, eu não sou a única. Todos os dias eu levo uma hora e meia para atravessar Santiago, e o transporte público está cheio de pessoas que precisam se deslocar: elas persistem ou são demitidas. É como ir ao matadouro. Na segunda-feira, havia tantas pessoas que, quando o trem chegava, te empurravam e te acotovelavam. Ninguém pode manter distância do outro. A única coisa que você pode fazer é se agarrar às pessoas ou ao corrimão se o metrô frear e rezar para não se infectar com o vírus que está naquele ar.

 

No Chile, eles fazem um toque de recolher, mas quando ninguém está na rua. De manhã, por outro lado, é preciso cumprir o cronograma e, como o metrô abre apenas às 7h, todos estão desesperados para chegar a tempo. Não sei como o Ministério do Trabalho não o antecipou. Pelo menos eu tenho uma máscara, mas para quem quer comprar, está esgotado. Em janeiro passado, alguns chineses foram à farmácia e me avisaram que isso estava ficando forte. Eles me recomendaram reservar duas caixas para mim e, graças a Deus, eu os ouvi.

 

Na farmácia também não existem máscaras suficientes. Temos uma para o dia inteiro: elas duram entre duas e quatro horas. Gerenciamos da melhor maneira possível. Com álcool em gel, limpamos o balcão e a máquina onde as pessoas põem suas impressões digitais para pagar.

 

Eu não beijo ou toco meus filhos. O menor é epiléptico e não pode ter febre alta, então ajo como se estivesse com o vírus: saúdo e digo adeus da porta, com o coração tenso e, quando volto, entro pela cozinha. Lavo minhas mãos, tiro minhas roupas e jogo tudo na máquina de lavar. Ser mãe e provedora é duplamente difícil. Meus filhos são grandes e podem cuidar de si mesmos, mas mães que têm filhos pequenos e antes os deixavam sob os cuidados dos avós estão passando por um momento muito difícil.”

Fabiola Alzamora, médica em Santiago: poucos leitos para o novo coronavírus Foto: Arquivo pessoal

“Os pobres vão morrer, e os ricos também” – Fabiola Alzamora, 36 anos, médica de emergência

Fabiola Alzamora, médica em Santiago: poucos leitos para o novo coronavírus Foto: Arquivo pessoal

 

“Trabalhei como médica no sistema público de saúde por 10 anos e em 2010 emigrei para o Posto Central (o principal centro de emergência de Santiago). Desde o início, denunciei situações que custavam a vida das pessoas, mas nunca tive uma resposta. Hoje temos um ministro da Saúde que diz que temos a melhor saúde do planeta, mas isso é mentira e tem sido gritado desde 18 de outubro.

 

A verdade é que somos um país que investe 8% do seu PIB em saúde. Fizemos progresso, mas ainda é insuficiente: no Chile, as pessoas geralmente morrem esperando ser atendidas.

 

Agora que estamos em uma emergência de saúde, elas vão morrer ainda mais. Não estamos preparados para combater esta crise, nem estaremos. Nós, os médicos — que sustentamos a casa inteira com uma mão, como se fôssemos Hércules, para impedi-la de desmoronar — não temos suprimentos mínimos para nos proteger. Enquanto o governo continua tapando o sol com a peneira, recebemos 200 consultas por dia relacionadas a doenças respiratórias.

 

O Ministério da Saúde nunca se pronunciou sobre como devemos estruturar o hospital, distribuir os fluxos, para onde os infectados serão mandados ou quais são as barreiras sanitárias: quantas máscaras seriam usadas, se deveríamos ou não operar os pacientes, ou como usar os pavilhões eletivos. Todos nós, funcionários, tomamos essas decisões através de nossos especialistas, à medida que o tempo passava e o número de pessoas infectadas aumentava.

 

Somos um dos países com a transmissão mais rápida em todo o mundo depois da China. No Chile, a previsão dos níveis epidemiológicos foi cumprida perfeitamente e, em 6 de abril. O que faremos com os pacientes se não conseguimos lidar com os que já temos todos os anos devido à gripe? O que acontecia na Itália, onde era preciso escolher quem vive e quem não vive, é o que vivenciamos diariamente em La Posta. A chegada da Covid-19 apenas agravará a situação.

 

As 700 camas a mais de UTI  que o governo ofereceu até junho não são viáveis, porque também não há ninguém para cuidar delas e o pessoal da saúde acabará ficando doente. Também não sabemos qual protocolo aplicaremos quando isso acontecer. Qual será a gestão dos funcionários doentes, quando precisarmos fazer o exame ou quem nos substituirá. Em março eles nos enviaram um memorando dizendo que não será considerado uma doença ocupacional.

 

Quem não tem dinheiro neste país morre. Mas agora com uma pandemia, quando precisamos ventilar quatro pacientes, e temos um respirador, entraremos em colapso. O sistema privado fornece 300 leitos de UTI e também não pode lidar com a carga. Se você me perguntar, como os pobres vão fazer? Minha resposta é que eles vão morrer e as pessoas ricas também, porque todos nós vamos ficar doentes, é isso que as autoridades não medem. Estamos na fase 4 e ainda não decretamos uma quarentena nacional! Apenas os febris e aqueles que têm contato com um suspeito são testados, e a rastreabilidade foi perdida. Piñera diz que está mais preparado do que a Itália, mas nem lá nem na Espanha demoraram tanto tempo para agir. Eu sinto desamparo e frustração. Sentimo-nos à deriva e, no entanto, não podemos cruzar os braços.”

 

“Há uma sensação de impotência muito grande” – Héctor Campos*, de 61 anos, empregado

“Estou na terceira idade, tenho hipertensão e já operei o coração. Mas eu acordo às 5 da manhã para ir trabalhar e, embora eu tenha minha própria casa, não tenha dívidas e meu salário seja de 600 mil pesos líquidos (R$ 3.500), sou o único sustento da minha família e sabemos que minha aposentadoria não vai ser boa. Moro com minha mulher, que é dona de casa, e meus três filhos, e neste momento sou o único que sai para ir à rua. O perigo sou eu: se ficar doente, infectarei minha família.

 

Trabalho há nove anos em uma empresa dedicada à indústria de alimentos. Levo cerca de duas horas para chegar lá e ontem, quando o metrô fechou às 19h, tive que tomar cinco conduções e gastar cerca de 12 mil pesos (R$ 70). Somos em torno de 30 trabalhadores e demos ao proprietário a ideia de fazer turnos éticos para que alguns possam estar em casa. Organizamos tudo, com cobertura das diferentes áreas. Mas suas respostas eram absurdas e todos percebemos que a palavra final era não.

 

Isso me dá uma sensação de impotência muito grande. Não consigo largar o meu trabalho porque, neste país, com mais de 60 anos, é difícil encontrar emprego, mesmo com um bom currículo. E também não posso e não quero ficar doente nessa idade. O que pretendo é ficar até 65 anos e me aposentar. Talvez peça as férias que ainda tenho para ficar em casa…

 

Existem empresas onde os empregados  estão trabalhando durante meio período. Há outros que chegam uma hora depois e saem uma hora antes, mas aqui não vejo facilidade, vontade de nos dar um pouco de conforto. Eu acho que eles deveriam, como fizeram em outros países, dar pelo menos duas semanas de quarentena, porque pelo que vejo continuará aumentando o número de infectados. Se El Salvador, que é um país pequeno e mais pobre que o Chile, fez isso recentemente, acho que esse governo pode fazer o mesmo.

 

O futuro me assusta às vezes. Tento não pensar muito, mas se isso continuar, ficará ainda pior. Enquanto isso, tento cuidar da minha saúde e que em minha casa estejamos bem preparados para tudo. Tudo o que está acontecendo agora é assustador. Os políticos neste momento não valem de nada. Todo mundo só olha para o próprio bolso, nada mais.”

 

* (O nome do entrevistado foi alterado por medo de perder o emprego). 

 

“Noventa por cento de nossos estudantes são vulneráveis” – Patricia Pérez, de 50 anos, diretora de escola

Patricia Pérez, diretora de escola em Santiago: alunos não tem como fazer aula pela internet Foto: Arquivo pessoal

Patricia Pérez, diretora de escola em Santiago: alunos não tem como fazer aula pela internet Foto: Arquivo pessoal

 

“Sou a diretora da escola privada subsidiada San José Obrero, em Peñalolén. Dos 520 estudantes que temos, 90,4% são vulneráveis. Desde que as aulas foram suspensas, as medidas de educação do governo foram projetadas para estudantes com dinheiro e não para as massas, não para crianças como as nossas. Nossos alunos são filhos de empregadas que trabalham na limpeza de casas no bairro alto, onde faltar não é permitido, ou onde, se não forem trabalhar, não são remuneradas. Pais que trabalham na feira e que os levam com eles, porque não há ninguém em casa para cuidá-los. De famílias onde ficar preso dentro de casa é um problema, porque há violência intrafamiliar que devemos denunciar constantemente. Daquele Chile pobre que não pode trabalhar remotamente, mas também não pode se sentar com as cabras para estudar, que no meio de uma pandemia chegam atrasadas e cansadas ao trabalho, com medo de que tenham pegado o vírus enquanto cruzavam Santiago para ganhar seu pão.

 

O Ministério da Educação exige que continuemos. Eles nos dizem que temos que ensinar o conteúdo à distância e fazer aulas virtuais, que temos que lhes enviar lição de casa, mas eles não têm computadores e muito menos um lugar calmo para estudar: a maioria vive amontoada em suas próprias casas, ter um espaço próprio é o luxo de outra pessoa. Há alguns anos, investimos nove milhões de pesos em um aplicativo que não ajudou: o Wi-Fi caiu. Somente na escola há fibra ótica. Se eles têm internet, é pré-pago e no celular, não funciona porque existem muitas montanhas aqui, é uma região pré-cordilheira.

 

Os professores adotaram turnos e temos escolas abertas caso uma criança ou um pai venha procurar livros. Apenas 47 apareceram, o resto não pode, porque precisa continuar trabalhando. O surto social começou com a enorme diferença social entre ricos e pobres, e agora, se adicionarmos a pandemia, essa diferença continua a aumentar. Essa é a coisa complexa: nem mesmo com uma crise social de cinco meses eles perceberam que precisam assumir o controle e mudar o modelo.”

 

 Agência O Globo

Agência O Globo

Do Agência O Globo | Em: 10/05/2020 às 09:34:07

 

 

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