A influenciadora Mariana Borges Ferreira, conhecida como Mari Ferrer, foi agredida verbalmente e humilhada pelo advogado de defesa do empresário André de Camargo Aranha, que foi acusado de tê-la dopado e estuprado em uma boate em Florianópolis em dezembro de 2018 e absolvido pela Justiça catarinense em setembro deste ano, na primeira instância. É o que mostra um vídeo revelado ontem pelo site Intercept. As imagens geraram revolta e foram comparadas a tortura pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e pelo conselheiro da Corregedoria Nacional de Justiça Henrique Ávila.
No trecho divulgado, aparecem na tela Mariana, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, que representava o réu no processo, o juiz, um promotor do Ministério Público de Santa Catarina e um defensor público. Rosa Filho apresenta cópias de fotos consideradas sensuais tiradas pela jovem enquanto modelo profissional. Ele define as poses como “ginecológicas” e afirma, em tom agressivo, que jamais teria uma filha “no nível de Mariana”. Em outro momento, repreende o choro de Mariana: “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado. Falso. Essa lágrima de crocodilo”, e a acusa de ganhar a vida “com a desgraça dos outros”.
Mariana tenta defender a si própria, pede que o advogado se atenha aos fatos em julgamento. No trecho publicado pelo site, o juiz Rudson Marcos só interfere para perguntar se Mariana precisa tomar água para se recompor e diz que poderia suspender a audiência. Entre lágrimas, ela pede ao juiz respeito: “Eu só estou pedindo respeito, doutor. Excelentíssimo, eu estou implorando por respeito, no mínimo. Nem os acusados de assassinato são tratados da forma como estou sendo tratada, pelo amor de Deus. O que é isso?”.
No Twitter, o ministro Gilmar Mendes afirmou que as cenas são “estarrecedoras”. “O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”, escreveu.
A Corregedoria Nacional de Justiça instaurou uma investigação para apurar a conduta do juiz durante a condução da audiência do caso. A apuração foi aberta após pedido do conselheiro Henrique Ávila, que classifica como “tortura” o que aconteceu na audiência. “As chocantes imagens do vídeo mostram o que equivale a uma sessão de tortura psicológica no curso de uma solenidade processual”, escreveu Ávila no pedido.
Por unanimidade, o Senado aprovou, também ontem, um voto de repúdio ao advogado Rosa Filho, ao juiz Rudson Marcos e ao promotor Thiago Carriço de Oliveira por “distorcerem o fato de um crime de estupro, expondo a vítima a sofrimento e humilhação”.
Procurado pela reportagem, Rosa Filho disse que as falas foram “descontextualizadas”:
— Foi uma audiência longa, pegaram a minha fala descontextualizada e editada e tentaram me pintar como se eu tivesse desrespeitando uma suposta vítima de estupro e, na verdade, eu estava exercendo o meu papel.
Em nota, o Ministério Público de Santa Catarina lamentou a postura do advogado, afirmando que ela “não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas”, ressaltando que o caso deve ser apurado pela Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB de Santa Catarina informou que recebeu as denúncias sobre a conduta do advogado e oficiou o mesmo para que ele preste esclarecimentos preliminares. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina não respondeu aos pedidos de entrevista.
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), por meio de sua comissão de mulheres, divulgou nota de repúdio à “utilização de linguagem sexista e humilhante contra vítimas mulheres no âmbito do Poder Judiciário”: “As mulheres brasileiras, infelizmente, já sofrem de forma rotineira múltiplas formas de violência e preconceito. Ao buscar a Justiça, elas almejam não apenas a merecida reparação contra tais eventos, mas, antes de tudo, acolhimento e respeito à sua condição. Por isso, a invocação, em juízo, de estereótipos sexistas e que buscam estigmatizar a pessoa, traduz discriminação com graves repercussões institucionais, capaz de atingir a credibilidade de todo o sistema de Justiça”.
Também por meio de nota, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos informou que, quando a sentença em primeira instância foi proferida, se manifestou questionando a decisão. A pasta repudiou ainda o termo “estupro culposo”, usado pelo Intercept para definir a tese defendida pelo promotor em suas alegações finais, que pedem a absolvição do acusado por não ter tido a “intenção” — ou seja, o dolo — de estuprar Mariana.
O Ministério Público de Santa Catarina afirmou que não é verdadeira a informação de que o promotor Thiago Carriço teria se manifestado pela absolvição do réu, por ele ter cometido “estupro culposo”. Ressaltou que esse tipo penal que não existe no ordenamento jurídico brasileiro. O MP de Santa Catarina declarou que Carriço interveio em favor da vítima em outros momentos da audiência e que a absolvição se deu por falta de provas, e que sempre combateu as práticas de violência sexual de forma rigorosa.
O caso corre em segredo de Justiça, mas veio a público quando a blogueira compartilhou um relato em suas redes sociais, em maio do ano passado. Ela afirma ter sido dopada em uma festa no Café de La Musique e depois estuprada. Mariana disse se lembrar apenas de flashes da noite em questão (15 de dezembro de 2018), o que fez com que André fosse indiciado por estupro de vulnerável. Um exame posterior constatou que o esperma encontrado era compatível com o DNA do empresário paulistano, que chegou a afirmar que nunca tinha tido contato físico com ela. Mas o exame toxicológico incluído no processo não confirmou a presença de substâncias lícitas ou ilícitas no sangue de Mariana.
Em setembro deste ano, o juiz Rudson Marcos absolveu André. O magistrado acolheu os argumentos da defesa do empresário e a própria posição do MP, que se manifestou pela absolvição do réu pela “ausência de provas contundentes para corroborar a versão acusatória”. A reportagem não conseguiu contato com Mariana ou sua defesa.
Segundo a defesa de André, o MP “reuniu centenas de provas, dez depoimentos de testemunhas, incluindo oito mulheres, vários exames periciais e todas as evidências mostraram que não houve estupro”.
Do Agência O Globo | Em: 04/11/2020 às 08:51:54