
Em fevereiro de 2021, o então governador de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou que o governo testaria o efeito de “controle da disseminação” do vírus da COVID-19 da Coronavac, vacina contra a doença pandêmica desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac, mas que ele insistia em chamar de “vacina do Butantan” — referência ao instituto de pesquisa biomédica do estado fundado em 1901.
Para o teste, a quase totalidade da cidade paulista de Serrana (45 mil habitantes) seria envolvida. O Butantan “vai imunizar cerca de 30 mil moradores de Serrana”, disse Doria. O diretor do instituto, Dimas Covas, destacou o pioneirismo do que chamaram de “Projeto Serrana” ou “Projeto S”: “Nós estamos fazendo isso pela primeira vez no mundo. É um projeto que vai estudar a eficiência da vacina”, afirmou Covas.
Funcionou? É a pergunta que fez a si mesmo o pesquisador independente Cícero Moraes, um polímata de Sinop (MT) cujo trabalho em diversas áreas, da reconstrução tridimensional de rostos de personalidades históricas à contagem de multidões em manifestações de rua, tem sido reconhecido em organizações internacionais. Ele publicou um artigo preliminar com suas conclusões no dia 12.
Serrana, na verdade, se saiu pior que cidades similares
O que Cícero descobriu é espantoso. Enquanto o Butantan alegou em julho de 2021, por exemplo, que a Coronavac tinha 100% de eficácia contra casos severos de Covid e mortes pela doença, dados oficiais mostram que Serrana não se mostrou mais protegida contra mortes que outras cidades ou que a média nacional.
Na verdade, Cícero mostra que o número acumulado de mortes de Serrana cresceu após cada dose da Coronavac, atingindo no final de 2022 um patamar superior ao de cidades que servem de comparação como Botucatu (onde foi aplicada a vacina da AstraZeneca) e Sinop. Ele também usou o país insular de Seicheles, do Oceano Índico, para comparação.
“Serrana não mostra vantagem perceptível acima de outras, (…) com mortes subindo mesmo após doses adicionais, bem acima de uma linha horizontal estimada aproximadamente refletindo o discurso notavelmente otimista das coletivas de imprensa do Projeto S”, escreveu o pesquisador mato-grossense.
Ele toma o cuidado de não sinonimizar sua análise com uma avaliação dos efeitos da Coronavac no organismo. Afinal, são dados epidemiológicos. No mínimo, esses dados contam uma história surpreendente, especialmente quando comparada à narrativa de Doria e companhia.
“Os casos de Serrana, Botucatu e Seicheles sugerem que, embora as vacinas tenham demonstrado proteção contra casos sintomáticos e severos, o número de mortes permaneceu alto comparado às expectativas iniciais”, concluiu Cícero, no artigo.
Talvez o Instituto Butantan esteja ciente dos resultados decepcionantes. Um sinal disso é que, se antes o instituto tinha em seu site uma página dedicada ao Projeto, desde outubro de 2024 a página está fora do ar, sem aviso ou mensagem de erro. O Projeto Serrana foi jogado no buraco da memória.
Pesquisadores brasileiros fazem ataques pessoais em vez de tratar da substância do estudo
Já no artigo, Cícero Moraes menciona a resistência do establishment científico em publicar seus achados, apesar da transparência de seus métodos e da oficialidade dos dados. Um dos editores que rejeitaram o manuscrito alegou, por exemplo, que a identidade de Serrana “não estava clara”, o que é ridículo.
“Argumentos dessa natureza, junto a observações que poderiam ser facilmente resolvidas no processo de revisão, sugerem que a rejeição não se deve por falhas importantes, mas, em vez disso, por desconforto com o objeto de análise”, comenta candidamente o autor.
Uma vantagem de Cícero como pesquisador independente, com múltiplos interesses, é que ele não precisa andar na linha dos tabus políticos que controlam narrativas nas universidades, hoje em grande parte tomadas por carreiristas com baixo interesse até nas próprias áreas.
Não foram só os editores de revistas acadêmicas que se comportaram da forma descrita. Isso foi visto nas redes sociais. Quando o autor divulgou seu estudo e pediu por avaliações críticas, recebeu em vez disso saraivadas de ataques pessoais, carteiradas de currículo e o que o especialista em pesquisas eleitorais americano Nate Silver chama de “blueskyismo” — referência à rede social Bluesky, reduto de progressistas muitas vezes extremos que fugiram do Twitter.
Um dos piores exemplos dessa resposta foi o de Elisa Brietzke, doutora em psiquiatria pela UFRGS que trabalha no Canadá. Em conversas públicas sobre Cícero no X, ela se recusou a tocar na substância ou nos argumentos do artigo, preferindo lançar petardos sarcásticos contra o autor: “Olá pessoal, passando aqui para dar um carteiraço em anti-vaxx”, disse ela, associando o pesquisador independente sem provas ao movimento antivacinas.
Segundo Silver, uma das características “essenciais” do blueskyismo é o “credencialismo”. Consiste em “Apelos a autoridades, em especial autoridade acadêmica” e “A centralização da adequação de quem fala com base em suas credenciais e/ou características identitárias, em oposição à força de seus argumentos”.
É o que Brietzke fez, junto com outros acadêmicos. Na mesma postagem no X, feita em resposta a Cícero, ela continuou dizendo que “Passei no meu primeiro vestibular em federal, tenho duas residências, mestrado, doutorado e três pós-docs [pós-doutorados] (dois no exterior). Publiquei mais de 300 artigos revisados por pares em revistas que incluem Lancet e British Medical Journal. Sou professora titular de uma universidade do Canadá e honorária de outra na Dinamarca”.
É esse tipo de coisa que nos dá vontade de citar o Barão de Itararé.
Mas isso é só bate-boca de rede social, certo? Os indivíduos têm personalidades às vezes abrasivas, para dizer o mínimo. Instituições são diferentes. Será? Não por esse indicativo: a resposta do Instituto Butantan a Cícero Moraes foi bloqueá-lo no X.
Ponho uma hipótese na mesa, para apreciação: talvez a ausência de um prêmio Nobel no Brasil não seja culpa de pesquisadores individuais. Talvez seja culpa das instituições, com seus incentivos perversos para carreirismo, ciência salame (que consiste em picotar resultados para render vários artigos de baixa qualidade) e outras práticas antiéticas, vício em Estado, parcerias com ditaduras e o ambiente opressivo de consenso político e alergia à diversidade de pensamento. Talvez o Brasil mereça não ter um Nobel.
