Enquanto os focos de incêndio crescem em diversos pontos do Brasil, vem ganhando força o debate sobre o endurecimento da punição para quem provoca queimadas.
Atualmente, segundo a lei nº 9.605, de 1998, a pena máxima para quem propositalmente ateia fogo em florestas e outros tipos de vegetação é de 2 a 4 anos de reclusão e multa, mas só nos casos em que o dolo é provado —ou seja, a intenção de causar dano. Nos crimes culposos, em que o dano seria acidental, a pena é de 6 meses a 1 ano e multa.
“Comprovar o dolo, a intenção de causar o incêndio, para chegar à pena de 2 a 4 anos é muito difícil”, afirma a coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo. “A dificuldade de provar o dolo acaba facilitando o descumprimento da lei.”
Maurício Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental, acrescenta que por ser considerado um crime de menor potencial ofensivo, as penas muitas vezes acabam convertidas no pagamento de cestas básicas.
“O artigo 41 [da lei de crime ambiental, que trata de incêndios] não prevê um crime grave, mesmo que seja um incêndio devastador”, diz. “O dano é muito grave. É um dano coletivo, à saúde da população. Causa prejuízos ao orçamento público. E a pena é mínima.”
Araújo, que presidiu o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) de 2016 a 2018, avalia que incêndios florestais dolosos acontecem, mas não são a regra.
“Na crise atual, a Polícia Federal está investigando vários casos de incêndio doloso, provavelmente com mandantes, numa articulação criminosa. Mas não é essa a realidade da maior parte dos incêndios que ocorrem no país”, diz. “A maioria decorre do uso inapropriado do fogo em propriedades rurais, e aí vai cair na modalidade culposa.”
O governo federal tem interpretado os altos índices de incêndios em áreas de vegetação nativa como um sinal de que o fogo, em detrimento do desmatamento, que vem caindo, está sendo usado para apropriação de terras públicas na amazônia.
De acordo com André Lima, que chefia secretaria do Ministério do Meio Ambiente focada no controle do desmatamento, a vantagem desse método seria que a aplicação tradicional da pena contra o desmatamento não tem a mesma eficácia no caso de fogo.
“No desmatamento, você pune quem é o dono da terra ou o posseiro da terra, independentemente de quem desmatou. No caso do fogo, você precisa comprovar que quem acendeu o fogo foi a pessoa A, B ou C”, diz.
“[Para a responsabilização penal] tem que ter uma perícia, e normalmente a perícia consegue identificar a origem, ou seja, onde aconteceu o primeiro fogo. Mas dificilmente você tem o rastro, a digital, de quem colocou fogo na mata.”
O governo também diz que vem encontrando casos em que o fogo é usado como vingança, em reação a ações de fiscalização ambiental.
Em Brasília, que nos últimos dias foi tomada pela fumaça, membros do governo pediram o endurecimento da pena para crimes ambientais em reunião com o presidente Lula (PT) na última terça-feira (17). O senador Randolfe Rodrigues, líder do governo no Congresso, afirma que serão apreciados projetos de lei nesse sentido que estão em debate no Senado.
Uma minuta elaborada pelo Instituto Socioambiental e o Observatório do Clima encaminhada ao STF (Supremo Tribunal Federal) e a autoridades pede a revisão da lei de crimes ambientais. Entre as mudanças sugeridas estão o aumento das penas para o crime de incêndio florestal doloso para 6 a 10 anos de reclusão, e no caso culposo, de 1 a 3 anos.
Também são propostos outros tipos de ações repressivas, como suspensão do CAR (Cadastro Ambiental Rural) e do crédito rural da propriedade vinculada ao crime e suspensão de financiamentos públicos e privados do proprietário.
As organizações fazem a ressalva de que deve haver um cuidado especial com os usos e costumes de povos indígenas e comunidades tradicionais, que utilizam fogo em alguns cultivos, para que a soberania alimentar dessas populações seja respeitada.
A instância penal não é a única onde tramitam os crimes ambientais, que correm também nas esferas administrativa e civil. No último caso, Guetta explica que não é preciso provar a intenção para que o responsável pelo incêndio seja obrigado a arcar com a reparação ambiental.
“No âmbito civil, a responsabilidade é objetiva: não é preciso demonstrar a existência de dolo ou culpa —nem a vontade de realizar aquele dano, e muito menos a culpa do agente”, diz, acrescentando que isso se aplica até mesmo se, por exemplo, um raio atinge uma fazenda e causa danos na área de reserva legal (área de vegetação nativa obrigatória).
“Esse dano não foi culpa do fazendeiro, mas, para o direito ambiental, como o dano ambiental é muito grave e ele é contra a coletividade, mesmo nesses casos é o proprietário que tem que reparar o dano.”
Já a esfera administrativa, onde também é necessário provar o dolo, diz respeito aos autos de infração e embargos aplicados por entes de fiscalização, como o Ibama.
Até o final do ano passado, quase 130 mil processos de cobrança de multa estavam em tramitação no instituto, totalizando mais de R$ 35,7 bilhões —equivalentes a mais de nove vezes o orçamento total deste ano da pasta de Meio Ambiente (R$ 3,9 bilhões). Em 2023, foram pagos apenas cerca de R$ 216 milhões em multas.
O imenso passivo de processos esbarra na falta de estrutura e pessoal, um problema comum aos órgãos ambientais nos diferentes níveis de governo. “As equipes são mínimas”, afirma Araújo.
“Essa é uma grande questão. Há mais de uma década, temos visto os órgãos das três esferas continuamente perderem sua capacidade institucional”, diz Guetta.
Isso se reflete não apenas nos processos, mas na própria fiscalização dos crimes contra o meio ambiente.
Desde 1934, a legislação proíbe qualquer tipo de queimada, exceto mediante autorização do órgão responsável —as secretarias estaduais ou municipais, no caso de prefeituras que têm conselhos de meio ambiente. Mas, na prática, as queimas são feitas sem que a licença seja nem sequer pedida e, depois, não são punidas, afirmam os especialistas.
“Eu acho que essa é a regra mais desrespeitada do Brasil”, opina Araújo. “O fogo é usado no país inteiro. Quando os produtores queimam, fazem isso sem a autorização do órgão estadual e muitas vezes sem os cuidados necessários, como não fazer fogo na época da seca ou usar aceiros para que o fogo não passe para a propriedade do vizinho.”