Para evitar que fiquem impunes as nove mortes ocorridas em Paraisópolis, em dezembro de 2019, o Ministério Público de São Paulo deve divergir do entendimento da Polícia Civil e tentar mandar a júri popular o grupo de policiais militares envolvidos na ação em um baile funk na favela.
Integrantes da Promotoria responsáveis pelo caso, segundo a Folha apurou, não concordam com o entendimento do delegado do DHPP (departamento de homicídios) Manoel Fernandes Soares, que indiciou nove policiais por homicídio culposo –ou quando não há a intenção de matar.
Para o delegado, conforme o despacho de indiciamento obtido pela Folha, as mortes no baile funk só ocorreram porque os policiais militares “não observaram o necessário cuidado objetivo que lhes era exigível, sendo previsível, no contexto da ação, a ocorrência de resultado letal”.
Os nove mortos em Paraisópolis eram adolescentes e jovens de entre 14 e 23 anos, em sua maioria negros, de outros bairros periféricos de São Paulo, que tinham ido ao baile da comunidade. Quatro eram adolescentes; dos nove, uma era mulher.
Os promotores devem denunciar os policiais por crime intencional porque, para eles, conforme a própria manifestação no delegado, era previsível o resultado letal e os policiais assumiram o risco de matar ao agir em meio a um baile funk.
A tese do dolo eventual serve para a pessoa, por exemplo, que atira contra uma multidão. Ela não tem a intenção de matar alguém em específico, mas assume o risco real de matar alguém por conta das circunstâncias, conforme já manifestou a promotora Luciana André Jordão Dias, uma das responsáveis pelo caso.
Folicaps
“Na medida em que cercaram as rotas de fuga, deram causa ao tumulto, ocasionaram uma dispersão de quase 5.000 pessoas por ruas em que passam apenas 4 ou 5, assumindo o risco de matar”, disse a promotora, em agosto do ano passado, quando o inquérito ainda estava em curso.
Procurada novamente para comentar o assunto, a promotora não quis falar com a Folha. Em nota, o Ministério Público informou que o “caso da incursão da Polícia Militar que deixou nove mortos em Paraisópolis, em dezembro de 2019, foi encaminhado à Promotoria de Justiça do 1º Tribunal do Júri, que irá analisá-lo”.
Isso significa que os promotores que atuam no caso na Justiça comum só devem se manifestar em duas semanas, quando termina o prazo para o Ministério Público decidir sobre o assunto. Além de Luciana, também estão no caso os promotores Neudival Mascarenhas Filho e Alexandre Rocha Almeida de Moraes.
O indiciamento por um crime não-intencional, conforme entendeu o delegado da Polícia Civil, livra os policiais militares de um eventual júri popular e, na situação em específico, deve significar também a absolvição de todos os PMs envolvidos.
Pela legislação brasileira, homicídios dolosos praticados por PMs são julgados pela Justiça Comum. Já no caso de homicídios culposos, o julgamento cabe somente aos magistrados do TJM (Tribunal de Justiça Militar).
O processo de Paraisópolis no TJM está com o juiz militar do caso, Ronaldo João Roth, que já manifestou internamente que deve seguir o entendimento da Corregedoria da PM, de que houve legítima defesa, e arquivar o processo.
Ainda que os integrantes do Ministério Público denunciem o caso como homicídio por doloso eventual, a decisão sobre se haverá ou não júri caberá ao juiz da Justiça comum, do 1º Tribunal do Júri da Barra Funda. O magistrado pode aceitar a denúncia e, após a análise, não pronunciar os policiais (não enviar a júri popular).
De acordo com a versão oficial, a tragédia em Paraisópolis ocorreu na madrugada de 1º de dezembro após uma perseguição policial, iniciada momentos antes, quando ocupantes de uma moto atiraram contra PMs da Rocam (rondas com apoio de motocicletas) que faziam patrulhamento no entorno na favela.
Os PMs contaram que seguiram os criminosos até uma rua onde estavam concentrados os frequentadores do baile funk, cerca de 5.000 pessoas, e que os criminosos avançaram em meio ao público atirando para o alto, o que provocou tumulto.
Ainda segundo a versão oficial, a situação teria ficado tensa, com os frequentadores do baile atirando pedaços de paus e pedras contra os PMs, sendo necessário o apoio de outros policiais.
Segundo a polícia, foram usadas, nesse resgate, armas não letais, como bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e balas de borracha. Ao todo participaram da ação 31 policiais militares.
Os policiais narram ter percebido que, ao final do tumulto, em uma das vielas da favela havia um grupo de jovens caídos ao chão. Nove deles morreram.
Investigação da Corregedoria da PM vê ligação entre a ação policial e as mortes dos jovens, mas aponta “legítima defesa própria e de terceiros” após serem atacados com “garrafas, paus, pedras e demais objetos”.
O advogado Fernando Capano, que defende 20 PMs que atenderam a ocorrência, disse, por meio de nota, que aguardará “o juízo de valor que fará o Ministério Público acerca das investigações”.
“Espera que a Promotoria conclua, como já está a afirmar por muito tempo, pela completa ausência de nexo de causalidade entre a conduta dos policiais que atenderam a ocorrência e as mortes dos jovens na tragédia do Paraisópolis”, diz trecho da nota.
Capano afirma que “as lamentáveis perdas” aconteceram por conta da correria provocada pela invasão de motocicleta, “com dois indivíduos, que entraram atirando no fluxo do baile”. “Acaso a Promotoria entenda de maneira diversa, a defesa trabalhará até o fim, utilizando-se dos expedientes legais, para absolver os policiais e responsabilizar os verdadeiros culpados pelo lamentável episódio. Apenas assim se fará justiça”, finaliza.